Realidade virtual: novos planos para o velho machismo

O que a gente faz quando até mesmo a pedofilia e o abuso de menores parece divertido?

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Quando me inscrevi para escrever nesse prestigiado canal, precisei escrever, de bate-pronto, um texto sobre pedofilia. Pareceu-me uma questão adequada para filtrar as pessoas que se candidatavam a deixar outras linhas aqui. Fui ousado e defendi a diferenciação entre a doença da pedofilia, uma parafilia grave, e o crime de abuso de incapaz. Ainda entendo que a primeira deve ser tratada como uma maleita psiquiátrica grave e a segunda, com o braço pesado da lei. De outra forma: cabe, quiçá, desestigmatizar a doença e permitir que o acometido procure ajuda e, àqueles que sucubem e vão às vias de fato, aplicar a força da punição prevista pela lei. Em todo caso, não cabe, sob qualquer hipótese, romantizar qualquer uma delas.

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Recentemente, quis me aventurar no mundo dos jogos de horror. Gosto de filmes de terror, mas a imersão possível num videogame sempre me indipôs. Já tentei jogá-los, com a casa cheia e feliz, com a luz do sol a brilhar lá fora, e mesmo assim tive medo demais pra continuar. Na tentativa de experimentar de novo, cogitei comprar “O suicídio de Rachel Foster” numa promoção mega-camarada. Felizmente, esbarrei sem querer numa avaliação da sua história.

Rachel morre aos 16 anos, grávida. Cabe à jovem Nicole esclarecer as circunstâncias reais de sua morte, uma vez que ela é a herdeira do homem que teria engravidado a menina do título. O jogo é escrito e dirigido por um homem, italiano, com educação cristã católica e, felizmente, há alguns vídeos no YouTube que expõem, talvez não seu intento, mas sua realização: romantizar a pedofilia e o abuso de menores.

O pai de Nicole é um intelectual sedutor, capaz de falar dos astros do céu e consertar máquinas pesadas, um homem cativante e hábil. Assim ele é descrito e apresentado durante todo o jogo, não importando que tenha mantido uma menina cativa num hotel deserto e distante, sobre a premissa de ajudá-la com a dislexia. Tendo morrido aos 16 e tendo se relacionado com um homem 33 anos mais velho por 9 meses, é possível que o “professor” (matematicamente) a tenha seduzido ainda aos 15. Nicole recusa-se, com muita naturalidade, a aceitar que o pai é, na verdade, um monstro perverso, um abusador de crianças.

O jogo nunca pune o agressor. O próprio irmão da menina morta sugere que a menina tão especial encontrou amor. Rachel Foster é madura demais para sua idade. Anda e porta-se como uma adulta. Mas há um quarto – que, na história, não se sabe se foi decorado depois da sua morte ou antes – em que ela é retratada como uma criança, com uma cama própria e desenhos infantis. Leia-se: o autor/diretor, embora tente fazer com que Rachel pareça precoce, apresenta um quarto de criança. É importante notar que esse esforço por fazer Rachel Foster parecer madura acontece durante todo o jogo. A história acontece num estado americano em que a “idade de consentimento” é frequentemente trazida à tona. O autor justifica sua escolha de violar e matar uma criança com base na lei de “estupro estatutário”.

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Aqui, duas coisas me parecem importantes: a fantasia masculina, machista, misógina ganhando concretude e a vilificação da mulher (traída). Em 2018, uma linha aérea vietnamita inaugurou um serviço de bordo feito por mulheres em biquinis. Por mais que um serviço dessa natureza nos pareça (aos homens) aprazível, ela não PODE ter lugar no mundo real. Homens padecemos de muitas fantasias, mas isso não significa que poder e dinheiro as devam realizar. Nossas mentes saturadas de machismo podem ter fantasias dessa natureza, mas é preciso estar vigilante. Que nossas fantasias fiquem exatamente aí, nas fantasias.

A outra parte importante: Rachel Foster não se matou. Ela foi morta por uma mulher traída, incapaz de compreender que o grande vilão da história era seu ex-marido. O estereótipo da mulher traída, enlouquecida, incapaz de simpatizar a pobre adolescente violentada por um homem muitíssimo mais velho que ela, com prerrogativas de superior, sequestrada para um lugar ermo, enquanto ela tinha dificuldades de comunicação é a cereja do bolo desse intento monstruoso de culpar a vítima. De todos os personagens no jogo, a pobre Rachel Foster é a única que não tem voz.

O jogo é machismo digital criminoso para uma legião de incautos jogadores. Uma demonstração assustadora de que o machismo comunica-se por novos meios de maneira quase criminosa e fortifica-se com a linguagem de entretenimento caseiro.