A constante luta: planos de saúde se recusam a custear tratamentos de crianças com autismo

A trajetória dessas crianças para conseguir tratamento e acompanhamento apropriados tem sido a de batalha na Justiça por direitos já garantidos em lei.

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No próximo dia 2 de abril comemora-se o Dia Mundial de Conscientização do Autismo, data criada em 2007 pela Organização das Nações Unidas (ONU) para chamar a atenção para a causa do Transtorno do Espectro Autista (TEA). Estima-se que, no Brasil, existam mais de dois milhões de pessoas com autismo, amparadas pela Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, pela Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e pela Constituição Federal, que garantem e reafirmam o direito universal à saúde, e mais especificamente ao atendimento multiprofissional.

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Na prática, no entanto, a trajetória dessas crianças para conseguir tratamento e acompanhamento apropriados tem sido a de batalha na Justiça por direitos já garantidos em lei, mas que têm sido negados pelos planos de saúde.

Felipe Mazureck Bandel, de 11 anos, iniciou sua luta para obter o tratamento multidisciplinar completo em 2016, quando foi diagnosticado com autismo e sua mãe, Tatiana Mazureck, entrou em desespero ao saber que não teria condições financeiras de arcar com as despesas (custo de, em média, R$ 15 mil mensais). O plano de saúde negou a cobertura, alegando que o ABA (Análise Aplicada do Comportamento, da tradução em inglês) – amplamente indicado por médicos e demais profissionais da saúde, validado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), reconhecido pelo Ministério da Saúde do Brasil e pelo Sistema Único de Saúde (SUS) – não estava previsto no Rol de Procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

Em março de 2016, a família entrou com processo na Justiça solicitando a cobertura, que fora negada pelo juiz de primeira instância. A advogada do caso, Diana Serpe, que é especializada no atendimento de pessoas com TEA, conta que recorreu ao Tribunal de Justiça, que concedeu a liminar. “A liminar determinou que o plano de saúde disponibilizasse o tratamento na clínica que fora indicada no processo, que possui profissionais comprovadamente qualificados, disponibilidade de agenda e localização viável em relação à residência do Felipe para o deslocamento diário”.

O tratamento multidisciplinar de Felipe consiste em Psicologia ABA, Fonoaudiologia ABA, Terapia Ocupacional com integração sensorial e acompanhante terapêutico na escola. O processo terminou em 2017 e até hoje Felipe frequenta a clínica indicada, tudo custeado pelo plano. Hoje com 11 anos, o menino praticamente não é mais dependente do acompanhante terapêutico na escola.

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Davi Barbosa e seu pais viveram a mesma trajetória. Diagnosticado com autismo aos três anos, o menino enfrentou batalha na Justiça, após a negativa do plano em oferecer a cobertura adequada à sua condição. “O plano alegou que o tratamento específico não é obrigatório porque não está no Rol, indicou profissionais convencionais para o tratamento e clínicas extremamente distantes da residência de Davi”, relata Diana Serpe.

O processo foi iniciado em agosto de 2018, quando o menino tinha cinco anos. Dessa vez, o juiz de primeira instância concedeu a liminar, determinando que o plano disponibilizasse todo o tratamento indicado pelo médico, sem limitação do número de sessões anuais, sob pena de multa diária pelo descumprimento. Como o plano não disponibilizou o tratamento adequado dentro do prazo estipulado pelo Juiz, foi determinado que o tratamento fosse realizado por meio de reembolso integral, em clínica da escolha da família. “Houve sentença que consolidou a liminar. Inconformado, o plano entrou com recurso de apelação e o Tribunal de Justiça de São Paulo manteve a decisão, determinando que o plano de saúde tem a obrigação de disponibilizar o tratamento capacitado, ilimitado e com localização viável para o deslocamento diário”, explica Serpe.

Outra ação, mais recente, repete a história de vitória na Justiça, mas apresenta ainda um avanço. A menina Emília Lacerda conseguiu o reconhecimento de que a verdadeira função do acompanhante terapêutico em sala de aula é a de um profissional da saúde e que a sua remuneração deve, portanto, ser custeada também pelo plano de saúde. O magistrado Mario Sergio Leite, na ocasião, escreveu: “É evidente, portanto, que a legislação atual garante cobertura médica para o autismo e ao tratamento que o beneficiário do plano de saúde necessita, quais sejam, as sessões multidisciplinares indicadas, as quais têm natureza médica e não meramente educacionais”. O processo transitou em julgado em março de 2021 e o tratamento multidisciplinar está garantido enquanto houver indicação médica e a criança for beneficiária do plano de saúde.

A advogada coleciona casos como os contados acima, de negativas de planos de saúde, e faz o alerta: “A terapia ABA tem sua eficácia comprovada, considerada como uma das principais formas de intervenção eficazes sobre o TEA. Está prevista inclusive no Sistema Único de Saúde. Ceifar o tratamento de uma criança autista é tirar dela a oportunidade de uma vida funcional que, quando tratada adequadamente, pode ser alcançada. O fato de o tratamento multidisciplinar específico para autistas não pertencer ao rol de procedimentos da ANS não deve ser encarado como cláusula de exclusão de cobertura”.

Tema está para ser jugado em recurso especial no STJ

O debate em torno da cobertura do tratamento ABA para autistas pelos planos de saúde não é novidade no Superior Tribunal de Justiça de São Paulo (STJ). Diversas ações chegam à corte, que até então vinha apresentando decisões baseadas no entendimento de que o rol da ANS é exemplificativo, isto é, funciona como referência das coberturas mínimas obrigatórias, mas não exclui outras que se façam necessárias, por expressa indicação médica, para o tratamento de doença coberta contratualmente. Esse entendimento majoritário levou, inclusive, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – o maior do país – a editar a Súmula 102, que diz: “havendo expressa indicação médica, é abusiva a negativa de cobertura de custeio de tratamento sob o argumento da sua natureza experimental ou por não estar previsto no rol de procedimentos da ANS”.

Posição contrária, no entanto, vem se destacando na 4ª turma do STJ, que têm julgado improcedente o pedido de cobertura dos pacientes, afirmando que o rol da ANS possui caráter taxativo. Isto é, deve cobrir apenas os tratamentos que estão previstos na lista. Para Diana Serpe, essa é uma discussão que extrapola a questão do tratamento dos autistas. “O fato de alguns Ministros da 4ª turma entenderem pelo rol taxativo é muito perigoso não só para crianças com autismo, mas pensando em todos os níveis de doenças. Isso vai restringir muitos tratamentos modernos que são adotados e as possibilidades de curas das doenças, que serão muito restritas. É uma posição temerária”, avalia a advogada.

Um de seus casos, inclusive, foi escolhido para ser avaliado pela Comissão de Recursos Repetitivos do STJ, devido à divergência entre as 3ª e 4ª turmas do referido tribunal. Já vencedora em duas instâncias, a ação teve recurso especial interposto pelo plano de saúde, e agora aguarda julgamento definitivo da corte. Segundo Diana, a decisão terá repercussão geral, isto é, valerá para todos os casos semelhantes, a partir de então.

Em sua defesa, entregue ao STJ, Diana Serpe compara os tratamentos oferecidos pelos planos de saúde a pacientes com câncer, que possuem altos custos e muitas vezes se prolongam por anos. “Por que um paciente com câncer pode receber tratamento digno e especializado por anos, e uma criança com transtorno neurológico grave não pode receber atendimento psicológico, fonoaudiológico e ocupacional com a devida especialização?”, questiona.